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sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

   

NFT, do hype ao risco: o que significa comprar um ativo não fungível?




Os NFT’s estão em alta: com o aumento do hype sobre metaverso, ativos digitais vem ganhando força e, com eles, um paradoxo: qual o tamanho do risco ao adquirir um ativo não fungível?


A História toda começa em 2014 quando no hackaton “Seven On Seven”, sete artistas digitais e sete tecnólogos influentes, reuniram-se em parar criar algo novo. Resultado: o artista digital Kevin McCoy em colaboração com Anil Dash, empresário da área de tecnologia, criaram um protótipo para prover a projetos artísticos digitais um sistema de certificação de origem baseado em blockchain. Estabelecendo um meio de controle sobre obras digitais, seria possível trazer mais retorno econômico para artistas. O intuito de garantir a propriedade de um trabalho digital original deu origem ao primeiro “gráfico monetizado” que depois passou a ser chamado NFT.

Em termos mais técnicos, NFTs são tokens criptográficos assim como os famosos bitcoins. A diferença principal é que bitcoins (enquanto critpto ativos) são “tokens fungíveis”, ou seja, possuem valor de troca correspondente. Assim como uma cédula autêntica de 100 reais que é sempre a mesma em qualidade e valor para qualquer agente econômico. NFTs, por sua vez, são não fungíveis, isto é, únicos e não intercambiáveis – cada token tem uma característica individual própria. Daí segue que NFTs são adequados para representar bens digitais, como obras de arte ou música, ou mesmo bens físicos singulares, como terrenos ou carros. Em resumo, um NFT vincula um objeto físico ou digital único a um token digital exclusivo. Dada sua exclusividade e padronização seguras, baseadas em blockchain, tais tokens podem ser aplicados a processos de negócio para declarar direitos de propriedade de bens físicos ou virtuais.

O potencial impacto econômico da tecnologia NFT tem sido avaliado como grandioso. Estima-se que somente NFT’s esportivos movimentarão USD 2.2 bilhões de dólares já em 2022. A PWC prevê que por volta de 2030 a tecnologia de blockchain como um todo (que é o pilar técnico do NFT) agregará cerca de USD 1,7 trilhão à economia global. Esse tsunami de inovação trará soluções para compartilhamento coletivo de bens (via smart contracts), modelos descentralizados de financiamento, além claro de provocar uma revolução na criação e distribuição verificada de bens digitais (de obras de arte a Pokemon cards) e tantas outras aplicações no âmbito da chamada “creator economy”.

Teoria e prática


Anil Dash, um dos pais do NFT, em recente retrospectiva feita na The Atlantic, fala da distância entre o conceito que ele e Kevin Mccoy idealizaram, e a realidade que se apresenta já agora para os NFTs.

Se o propósito inicial era oferecer a artistas, proteção contra apropriações indevidas de suas criações digitais, o que se vê no momento são principalmente transações milionárias capitaneadas por early-adopters, nerds e multimilionários que não tendo o que comprar com seus recursos em criptomoedas, acabam por torrar somas incríveis em obras de “arte” digital – numa espécie de playground para especulação e picaretagem de toda ordem. Tudo isso ganha a destaque na mídia, talvez ajude a provar conceitos, mas na prática não tem sido capaz de promover a criatividade artística autêntica.

Vulnerabilidades


Obras de arte digital são objetos criados, distribuídos e experienciados por meios digitais. Um dos grandes obstáculos à internet como plataforma de monetização de arte digital, era que os artistas não contavam com recursos próprios da rede que garantissem autenticidade de uma peça de arte 100% digital – isso até a chegada do NFT. Esta tecnologia permite comprovar origem, autoria de uma obra, assim como ocorre em obras de artes físicas, por meio de assinaturas, certificados e registros legais. O NFT desempenha papel crucial pois o mercado de arte precisa de lastro de confiança, registro de transações e rastreamento, algo que se tornou possível por essa inovação sustentada em blockchain. A arte digital ganha, assim, uma nova perspectiva: obras podem ser listadas como se estivessem em um catálogo permitindo que, por mais que sejam copiadas, as duplicatas não terão o atestado de veracidade, originalidade e exclusividade da posse.

Não obstante seu caráter disruptivo, na época em que o NFT foi concebido, devido a limitações técnicas, não se conseguia armazenar uma peça de arte digital inteira dentro de uma estrutura blockchain. Dessa forma, a dupla Dash & McCoy engenhosamente incluiu um endereço web da imagem apontando para a obra de arte digital que deve estar armazenada em algum provedor de serviços na web. Este é um truque que continua sendo utilizado nas plataformas NFT.

Quando se adquire um NFT, não se adquire a arte real e sim um link que direciona para ela. Daí vem a pergunta: onde e quem armazena tais links? Como é possível assegurar que este acesso continuará ativo indefinidamente e à disposição daquele que adquiriu a obra digital? A hospedagem desses links cabe a empresas cuja solidez não é algo simples de atestar. Empresas podem ser facilmente extintas (sabemos que muitas startups não conseguem sair do vale da morte) e diante disso, problemas para o acesso ao NFT´s podem surgir. Essa é uma vulnerabilidade crítica da tecnologia que ainda espera solução robusta e adequada.

Mas os pontos fracos não param por aí. Em final de 2021, uma situação bizarra se deu no Bored Ape Yatch Club – conhecida coleção de desenhos com um macaco em vários estilos, comercializada no marketplace OpenSea. Explorando um erro humano no qual o proprietário de um exemplar de Bored Ape digitou a menor o valor de venda, um bot que monitorava as listas do OpenSea, comprou esse NFT pagando 100x menos que o valor de venda intencionado. Imediatamente em seguida, o bot colocou o item à venda pela quantia de quase 300 mil dólares! Nada a fazer pois é impossível desfazer uma operação blockchain. Curiosidade: essa mesma coleção teve uma aquisição recente feita por Neymar, que desembolsou USD 1,1 milhão por um exemplar de Bored Ape.

Outra controvérsia ao redor dos NFTs veio da icônica bolsa Birkin, da marca Hermés. Um artista americano chamado Mason Rothschild criou a “Metabirkin” em NFT e a colocou para comercialização. Está sendo processado por violação de marca comercial.

Sentimento de escassez


NFT’s têm sido valorizados pelo sentimento de escassez produzido ao se poder comprovar o seu registro. O mainstream econômico da escassez pode ser colocado – de forma simplificada - como uma condição da economia (capitalista ou não), onde sua existência é provocada e ao mesmo tempo “solucionada” pelo mercado.

Um NFT ao trazer a transformação da arte digital em ativo negociável, porém não fungível, adquire valor pela sua exclusividade, de fato. E a arte e o seu valor trazem recortes complexos de uma cultura. Os atributos de valor, por sua vez, são determinados para um grupo de pessoas numa relação dinâmica, para uma determinada época, dentro de um contexto cultural. Porém, na intersecção entre arte, criptoativos e negócios, existe ainda um oceano a ser explorado.

Ao mesmo tempo em que o blockchain avança e suas aplicações teóricas vão se concretizando, ainda repousam dúvidas sobre como conseguiremos incorporá-lo dentro do cotidiano, afinal, as transações em blockchain – hoje basicamente utilizadas para negociar criptoativos, ainda não se convertem imediata e facilmente em valores do mundo real.

Ativos negociáveis, sejam eles digitais ou não, dentro de um determinado mercado podem ter oscilação de valor, sejam com base na exclusividade, influência de quem negocia ou adquire.

Para os NFT’s artísticos, o sentimento da escassez é produzido à base do marketing de influência digital, onde fama e reputação potencializam o ativo como oportunidade de negócios dentro do ambiente digital do blockchain e de sua cadeia de valor. Não se pode perder de vista que quanto maior a procura de NFT´s artísticos com sua percepção de exclusividade e possibilidades de exploração econômica, maior será o valor desses ativos – seja por especulação seja por negociações grandiosas como as que vem sendo realizadas.

Assim, dentro dessa dimensão, a garantia de propriedade, exclusividade e lastro do bem são pilares de valorização do ativo ao mesmo tempo em que libera o artista digital de intermediários, dando-lhe controle direto sobre suas vendas.

Proteções Legais aos negócios


Ter um NFT não confere àquele que o adquire, o direito autoral da obra ou a sua propriedade intelectual: esses são direitos do criador do NFT. O que se tem direito é ao registro do ativo digital numa blockchain e não a mídia em si.

Portanto, ao adquirir um ativo desta natureza, você terá direito a um comprovante de que uma versão original do trabalho é sua. A obra original, portanto, não estará em seu poder e você terá o token (chave de acesso) de onde esta obra está localizada e registrada.

A transparência nessa relação não é tão evidente justamente porque, como Anil Dash afirma ao relatar a forma de criação da NFT, ainda há um cenário tecnológico limitado para o registro da arte digital dentro do blockchain.

O criador de uma NFT por exemplo, ao ceder, vender ou transferir um ativo, será remunerado pelos resultados econômicos decorrentes da utilização da sua obra. O fato de você ter adquirido o ativo digital não lhe confere, portanto, o direito de reproduzi-lo.

A União Europeia vem explorando as questões relacionadas aos direitos do autor e as NFT’s, buscando uma atualização de conceitos legislativos e buscando dispor a respeito das transferências de direitos autoriais ao criador do conteúdo ou ao seu criador original. No Brasil ainda não há regulamentação e o ambiente blockchain ainda está repleto de desconfiança, ainda que a palavra confiança seja a cereja do bolo dessa tecnologia.

Buscar o lastro real de um NFT ainda é uma tarefa bastante complexa e sem transparência. Por isso não é difícil cair em negociações maliciosas, onde o NFT não sendo uma criação original, irá ferir direitos autorais que podem ser questionados pelo autor real.

Além disso, dentro do ambiente digital, nem sempre se consegue atestar a identidade do verdadeiro detentor da obra e, nesse sentido, é complexo identificar a autoria de um NFT. Como não há verificação de identidade na rede blockchain, qualquer um pode se passar por outra pessoa e vender NFTs de que não detém os direitos autorais.

Ausência de Regulação e Fraudes


A ausência de regulação também abre espaço para fraudes, independente do fato das NFT’s estarem sendo comercializadas num ambiente blockchain. Não se pode perder de vista que ambientes não regulados também são locais fáceis para o crime de lavagem de dinheiro. Ainda que o mercado de criptoativos venha procurando se distanciar cada vez mais desse fantasma, é certo que inovações tecnológicas também têm seus efeitos não previstos e esse é um deles.

Estruturar um negócio fake para negociar com NFT´s não parece algo impossível. Imagine redes de artistas falsos, criando obras fake, alavancados por marketing de influência, mas lastreados por tecnologia idônea. A próxima camada desse bolo seria estipular preços e armar negociações entre os falsários, produzindo transações fictícias para atrair incautos. Algo complexo, porém possível.

Tributação


Pela ausência de regulação dos NFT’s, também não há, ainda, uma tributação aplicável. Porém, dentro de aspectos amplos, é possível dizer que a tributação de NFT’s tem similaridade com a tributação aplicada aos criptoativos, ou seja, com base nos ganhos de capital. Assim a partir da valorização de um ativo posteriormente vendido, se houver diferença entre o valor de compra e o valor de venda (fora do limite de isenção) deverá ser o lucro objeto de tributação.

Futuro possível


Não há dúvida que NFT’s darão muito o que falar. O mercado tem tudo para crescer a partir das novas camadas de experiências de usuários como por exemplo nos metaversos. Ao mesmo tempo estabelecem-se novos players como curadores de conteúdo, plataformas, criadores digitais e adentram o campo as marcas já consolidadas que investirão cada vez mais nesse segmento para ampliar e aprimorar a experiência com seus consumidores. É preciso, no entanto, manter atenção aos potenciais riscos ao investir em NFTs, diante de um tema, como vimos, ainda rodeado de muita opacidade.

NFT’s, a despeito do hype, ainda sofrem com o relativo pouco entendimento da maioria das pessoas sobre sua operação e aplicações. A evolução tecnológica sempre nos coloca frente ao desconhecido e por isso é preciso estar municiado de informações antes de “pular de cabeça”. Buscar compreender a dinâmica dos novos negócios e obter informação junto aos players do mercado, pode ajudar a mitigar ou até eliminar riscos de que transações virem pó na mão de fraudadores e desavisados.

*Sílvia Piva, Advogada, professora, pesquisadora e fundadora da Nau d’Dês. Mestra e Doutora em Direito pela PUC-SP e membro do grupo de pesquisas do Instituto de Estudos Avançados da USP sobre as simbioses entre humanos e tecnologias.

Abel Reis, M.Sc. Engenharia de Computação pela UFRJ, Doutorando em Filosofia de Administração pela PUC-SP, Publicitário, sócio-fundador da Logun Ventures. Membro do grupo de pesquisas do Instituto de Estudos Avançados da USP sobre as simbioses entre humanos e tecnologias. Autor do livro “Sociedade.com – como as tecnologias digitais afetam quem somos e como vivemos”.

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